sexta-feira, 21 de agosto de 2009

O seu guri

Texto inspirado na canção "O meu guri" de Chico Buarque

Era pra ser apenas mais uma tarde de trabalho, corrido, suado, quente com a adrenalina correndo louca por minhas veias. Mas ao invés disso foi um dia de trabalho corrido, suado, quente, cheio de adrenalina, com sirenes latejando em meus ouvidos e luzes azuis e vermelhas piscando atrás de mim. Droga, a polícia!

Parecia que eu estava preso em um daqueles sonhos apavorantes em que é preciso correr, e correr, mas você nunca consegue fazer seu corpo se mover com rapidez suficiente. Eles se aproximavam.

Eu era um bom corredor, o melhor do 5.0 quadrilha Five – grupo de amigos do qual eu fazia parte, composto por cinco jovens ladrõezinhos – e brincávamos que eu poderia disputar uma maratona, quebrar todos os recordes mundiais e bater a carteira de todos os telespectadores ao mesmo tempo, mas parecia que nada disso adiantava agora.

Correr como um louco, jogar latas de lixo atrás de mim, empurrar pessoas... Nada. Eles continuavam se aproximando cada vez mais e mais enfurecidos, com mais gritos esganiçados saindo de suas gargantas secas.

Finalmente encontrei uma possível e estreita saída.

A mata escura ao meu lado me convidava a entrar.

Olhei para trás. Três policiais cansados imaginando, sonhando com o momento em que sentariam em suas poltronas macias com um pote cheio de rosquinhas de sabores diversos, agradecendo aos céus por não terem sido escalados para o plantão.

Mas neste momento, eles estavam aqui correndo atrás de um faveladozinho maltrapilho e ladrão, sob o sol de quase quarenta graus da cidade maravilhosa.

Tive vontade de parar de correr, esperar que eles me alcançassem e soltar:

– Ora, porque não voltam para suas casas? Aposto que o ar condicionado de seus dormitórios vai dar uma sensação muito melhor a vocês.

Tudo bem, li, ou melhor, consegui decifrar – após mais de dez minutos – essa frase que estava escrita em um outdoor no centro da cidade. Não me pergunte o que é um dormitório. Provavelmente é alguma coisa de dormir.

Mas, voltando ao presente, os policiais não parariam, não iriam para seus dormitórios, e a mata continuava a me chamar.

Resolvi aceitar seu convite e aumentei significativamente minha velocidade, tentando desviar dos obstáculos naturais.

Meus pés descalços começavam a doer, o que era um mau sinal. Talvez já estivessem até sangrando por causa das pedras e espinhos ocultos na mata. Bem, oculto para meus olhos e não para meus pés.

Olhei novamente para trás, não conseguia mais ver os policiais imersos em devaneios e rosquinhas, mas ainda era possível ouvir seus gritos. Mais um pouquinho e eles não conseguiriam mais me alcançar.

Apertei meu passo, minha respiração falhou um pouco, mas me obriguei a continuar. Faltava pouco, não podia ceder agora.

A cada batida de coração era mais difícil ouvir os policiais; era mais perceptível meu sorriso vitorioso.

Após alguns minutos de corrida, concluí que eles haviam desistido de me encontrar e corrido de encontro á suas rosquinhas e dormitórios.

Um sorriso enorme, maior que qualquer outro, tomou conta de meus lábios juntamente com uma sensação indescritível. Parecia uma mistura de alívio com histeria. Felicidade e aquele nervosismo chato que sentimos antes de subir em um palco.

De qualquer forma, eu não seria pego hoje.

A última frase ecoou em meu cérebro, tomou conta de minha cabeça, percorreu cada célula do meu corpo e me paralisou. Parei. Sentei. Sorri. Que sorte.

A grama não era macia como parecia ser na televisão, mas um colchão king-size não seria tão bom quanto essa grama cheia de espinhos e pequenos bichos se arrastando sob minhas costas se eu não estivesse com esse doce gosto de vitória na boca.

E então deitei na grama nada macia, e totalmente macia, com o maior sorriso vitorioso que eu já vira em meu rosto e os olhos fechados. Comecei a lembrar de como tudo começou. Eu só tinha que pegar a carteira do moço parado em frente à loja de CDs, era tão fácil! Quantas vezes eu já não havia feito isso? Mas o idiota do Luiz, tinha que parar por causa do relógio reluzente. O cara percebeu, gritou, e a polícia veio.

Outro erro. Como não vi a polícia á cinqüenta metros de mim? A culpa é sem duvida das mulheres. A culpa sempre é das mulheres.

Eu estava cego, precisava do dinheiro para encantar Juliana, a menina mais encantadora do morro. A eterna dona do meu coração.

Lembro-me de como a conheci, foi no aniversário de... Mamãe.

A imagem da mulher de aparência sofrida, sempre com um sorriso esperando para tomar conta de seus lábios invadiu todos os espaços de minha mente.

Era uma mulher com um otimismo incrivelmente grande considerando nossa situação. Papai foi morto por uma bala perdida quando eu só tinha três anos, mal me lembro de seu rosto ou sua voz, e desde então mamãe tem cuidado de mim como se cada dia fosse o ultimo que ela me veria. Ela lavava roupas de outras pessoas, mas isso nunca era o suficiente para nos sustentar. E mesmo sabendo disso, do sufoco que ela passa por mim, todos os dias minto para ela dizendo que vou estudar, quando na verdade vou assaltar as pessoas. Pessoas essas que não merecem o mínimo de respeito.

Descriminam e desprezam pessoas apenas por serem negros, ou morarem em favelas. Elas sim é que são desprezíveis! Ridículos riquinhos com mania de superioridade. O que eu faço, é um bem para a sociedade!

Mas isso não diminui o tamanho da minha culpa nem muito menos justifica todas as mentiras que contei a minha mãe. Ela confia em mim, porque faço isso?

Agarrei com força a grama ao lado do meu corpo, enquanto tentava controlar a culpa.

Minha mãe confiava em mim, ela dizia sentir orgulho de quem eu era e estava me tornando. Não era justo com ela e até mesmo comigo mentir tão descaradamente.

Eu me sentia um lixo quando ela começava a contar a história de quando eu nasci. Ela dizia que eu era uma criança boazinha com todos, menos com ela e que era só ela se aproximar que eu me desfazia em berros e lágrimas.

Ela sorria ao lembrar-se da primeira palavra que pronunciei, “papai”, e sua expressão mudava radicalmente ao lembrar-se dele. Então ela voltava a sorrir ao se lembrar de meu primeiro passo, e outros de meus feitos infantis.

Eu não conseguia encará-la nos olhos. Eu via a felicidade misturada a ingenuidade neles e me sentia o pior de todos os Judas.

Apertei mais meus olhos e senti uma lágrima lutando para sair espremida entre minhas pálpebras. Abri os olhos e senti aquela lágrima negra escorrer. Eu não devia chorar, eu não era a vitima da história e sim o vilão.

Eu não deveria estar chorando. Vilões são frios, sem sentimentos, não choram. Os mocinhos são os sofredores da história, e mamãe era a mocinha desta história idiota que sem querer eu havia escrito.

Não consegui imaginar minha mãe sofrendo por mim. Era doloroso demais.

O céu já escurecia, e alguns últimos raios de sol ainda podiam ser vistos. Quanto tempo passei aqui? Não importava mais.

De súbito levantei, ignorando as vertigens que me atingiram no mesmo instante, e bradei aos quatro ventos:

– Mamãe, me perdoe, eu vou mudar!

As lágrimas escorreram mais ferozmente que antes, e eu não lutava contra elas. Elas não eram a pior coisa agora. A culpa e a vontade de mudar eram muito mais fortes.

E então, eu ouvi um grito masculino a poucos metros de mim.

– Ei, moleque! – Reconheci a voz, eu já havia ouvido-a hoje. Era a voz de... De um policial!

– Ah não! – Suspirei com a voz cortada pelas lágrimas.

Pensei em correr, pensei em voar, estalar os dedos e sumir, pensei em mamãe. Não deu tempo de muita coisa – uma ultima lágrima fria escorreu e então o policial me alcançou.

– Marginalzinho desgraçado, sua mãe não te deu educação? – Disse apertando meu braço com uma força exagerada.

“Sim, ela me deu a melhor educação que eu poderia receber, mas fui ingrato demais para perceber isso, e agora é tarde”, pensei.

Sim, agora é realmente muito tarde.

– Vamos miniatura de malandro, que de agora em diante você não apronta mais! – Senti a felicidade estalar em sua voz enquanto me puxava pelo braço provocando uma leve dor. Uma dor que não chegava aos pés da que eu sentia por dentro.

Coloquei a mão livre no bolso esquerdo de minha calça e retirei a carteira do moço que eu havia roubado em frente à loja de CDs. Com tristeza a deixei cair no chão.

– Me desculpe mamãe, eu te amo mais que tudo na vida.

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